Lembro-me dos recados do padre Rigoni ou
do padre Menegat - de fim-de-missa na paróquia São Pedro nos tempos de
Páscoa. Diziam: ‘... e na Sexta-feira Santa os horários de adoração são os
seguintes: das 7 horas às 8 horas para as pessoas de mais idade; das 8 às 9
para os casais; das 9 às 10 horas para jovens; das 10 às 11 horas para os
meninos, das 11 às 12 para todas as crianças; depois, novamente a
partir das 13 horas... é livre... vocês têm que aproveitar estes
momentos de adoração... é só uma hora! Às 14 horas começam as solenidades
litúrgicas de encenação da crucificação e morte de Nosso Senhor Jesus
Cristo...’ e por aí se iam os recados dos padres no domingo de
Ramos. Eu descia os degraus da São Pedro – que hoje virou salão de baile ou de
reuniões do OP ou de sindicatos... até o Lula discursou lá..., e hoje é uma
livraria; pois naquelas Semanas-Santas eu descia os degraus da São Pedro e ia
no bazar do ‘Seu Aldinho’ ver as capas dos gibis, os álbuns novos, e se desse
até comprava uns envelopes de figurinhas do ‘Torneio Roberto Gomes Pedrosa...’.
ah – o cheiro da capa e das internas dos Kid Colt, dos Fantasma e dos Roy
Rogers, então, todos novinhos!
‘...Lembramos também’, dizia o padre
Rigoni escondido atrás das suas imensas lentes do óculos,... ‘que na
Sexta-Feira Santa não se deve comer carrrrrrnnnne verrrrrmelha... nós,
cristãos, temos que fazer jejum, aliás, o certo mesmo é jejuar já a partir de
Quinta-Feira que também é Santa. Antigamente (?) se jejuava até na
Quarrrrta-Feiiiiira... (arrastava para enfatizar, o padre Rigoni) mas a
moderrrrnnnidade foi se esquecccceeeendo da Quarrrrta-Feiiiiira... Também
devemos nos lembrar que ao menos na Sexxxxxta-Feiiiiiiira Sannnnnnnta, não se
deve ouvir música... nem se deve ligar o rádio... não se deve gritar... nem
falar alto. O silêncio deve ser a tônica deste Dia Santo. A blasfêmia – nem
pensar. Sexta-Feira Santa é um dia de respeito a Jesus Cristo que vai entregar
Sua Vida pelos nossos pecados... Aqui na igreja nós vamos usar as catracas no
lugar as sinetas... Sexta-Feira Santa não se deve namorar, nem ir a bares, nem
fazer servicinhos de casa e muito menos de ficar na cama... dormindo... nem...
é um dia de total devoção a Nosso Senhor Jessssuuuuuus Criiissssssto que vai
morrrrrrrrer por todos nós... pelos nossssssssssssos pecados’, recomenda o
padre Rigoni.
Hoje
em dia a Sexta-Feira Santa continua Santa!
Jesus morre de novo e pelo mesmo motivo.
Se fosse para redimir todos os pecados,
talvez Jesus precisasse morrer duas, três vezes por ano. Sua filosofia continua
a mesma. Seus ensinamentos básicos, de perdão e amor a Deus e ao próximo, idem.
Nas igrejas as recomendações ainda são
feitas – mas, convenhamos -, num tom bem mais moderado.
Hoje em dia, Sexta-Feira Santa, começa
cedinho da manhã quando dezenas, centenas de ‘pecadores’ voltam das boates, dos
bares, dos clubes... dos motéis.
Há quem se lembre do padre Rigoni e
comece a Semana Santa já na quinta. Bota a muamba e a família na camionete e
vamo pra praia, pra Marcelino, pra Piratuba... pra Cascata! Pro parque ou pra
piscina!
N’algumas casas o operário carrega o
radião lá para os fundos do lote onde vai limpar as traíras. O Ximitão da
Difusão – anuncia mais uma rodada dupla de sertanejas.
A caipira corre solta entremeada com
mates; alguém na TV vendo desenho, outro no quarto com som dos Tribalistas,
alguém mais ‘tc com vc’ num chat da liberdade acertando um ficar para à noite –
depois que o Cristo já estiver morto.
De meio dia, hoje em dia, é aquele
fartura de penitência: filé de peixe, traíra na grelha, ensopado de peixe,
arroz branco com ameixa, batatas assadas no forninho, maionese, salada verde,
uma baciada de tomate com cebola, pão fresquinho feito em casa, cerveja, vinho,
refris – mas é claro, nada, absolutamente nada de carne. Depois, musse, pêssego
em calda com creme de leite, sagu, mais creme e pudim.
O rádio na Difusão, e... ‘aaahhhhh, do
jeito que a vida quer/vou levando a vida do jeito que a vida quer.../’.
Entre um filé e outro alguém antecipa a
discussão: ‘e... amanhã, domingo, hein, e domingo; vamo comê o quê!? O pai vai
fazê churrasco e quem não gosta? Por que a mãe não faiz também uma massa com
galinha!’. Shlép, shlép, shlééééép!
Ali no Recanto do Chimarrão – também é
aquele jejum todo: ‘pega mais umas latinha lá e vamo servi a linguicinha...!’.
Piadas, jornal. Noite anterior - mulher, Grêmio e Inter. Tudo como um Santo
feriado requer! ‘De tarde vô tirá pra dormi tipo bicho!’.
De volta à casa, na TV – à tarde, quem
não se entregou ao trago; guerra no Iraque, guerra no Rio, debates e mais
debates sobre infidelidade, drogas, e gente querendo te empurrar frigideiras,
torradeiras, pipoqueiras...’.
E Jesus lá na São Pedro, morrendo, cada
vez com menos gente para a encenação.
Um grupo de andarilhos jaz na calçada ao
lado da antiga igreja. Viram a garrafa de plástico para mais um gole de cachaça
enquanto que um deles afasta com um ‘coice’ – o guaipeca da família, infestado
de pulgas e feridas. São barbudos, pecadores que ‘não tô nem aí/não tô nem aí’
para a paixão e morte Jesus. São excluídos. Seriam eles os apóstolos de hoje e
nós o povo que ‘vai levando a vida do jeito que a vida quer?’, a gritar gritos
mudos de ‘crucifica-o, crucifica-o...!?’.
No centro da cidade, na catedral São
José não é diferente: o padre Antoninho conduz a narrativa da encenação do
assassinato de Jesus Cristo, enquanto nas calçadas, namorados se namoram,
malandros de interior sentam nos encostos e sujam os bancos da praça com seus
tênis ou levantam o capô da Brasília e dê-le brega e cerveja quente. Crianças
puxam pais pelos braços e mãos para mostrar as novidades nas vitrines. Alguém
acelera a descarga e o azulzinho se vira rápido e faz de conta que não vê!
As sorveterias estão cheias; garrafas de
cervejas se amontoam nos bares; um carro de som passa convidando para o Transamérica
do Mister Albuquerque, onde a mulherada que chegar até a meia noite – não paga.
No bairro Presidente Vargas, o Ari
(Ariovaldo) já foi crucificado de manhã, ressuscitou, foi almoçar em
casa e já está de novo, pronto lá na catedral para ser crucificado de novo... Isso
sem contar que precisa ser rapidinho, porque tem que levar a cruz até o
Seminário Nossa Senhora de Fátima, onde haverá nova crucificação à noite – com
transmissão ao vivo em cadeia pelas rádios da região.
‘Pelo amor de Deus – tem que dar tudo
certo. Essa crucificação tem que sair nem que chova... mas Deus é bom. Vai
fazer tempo estrelado e eu vô poder dar com este relho no Ari, não, no Jesus.
Esse ano queremos fazer uma encenação de teatro. Alguém alerta pra não esquecerem
de levar os pregos... o ano passado tiverem que buscá um martelo num
vizinho...!’.
Às 15 horas, exatamente às 3 da tarde
portanto, Jesus expira e pede, pela 2019ª vez... que o Pai perdoe a todo porque
‘eles não sabem o que fazem’.
Nas casas, fim de tarde aparentemente
melancólico, as TVs trocam de mãos: agora é a vez das mulheres com seus maridos
a se insultarem na disputa pelo aparelho. Ela quer novela. Ele quer Datena. Ela
quer ilusão, circo, sonho. Ele quer sangue e baixaria.
Na janta – de novo – nada de carne.
Carne? - nem falar, e vá jejum: e então, que seja a vez da polenta
com fritadas, e mais fritadas de lambaris; assim
como Ele recomendou através da boca de todos os sacerdotes: ‘jejuemos e nada de
carne vermelha nesta Sexta-Feira - que é Santa. Temos que fazer penitência e
jejuar... jejuar!’. – Passa pra mim a polenta!!
Pra encerrar a Sexta-Feira – quem sabe
-, todos ao Santo, ao Santo Bar. Pelo menos até que a véspera da Páscoa raie
sobre a Erechim cristã!
Ai, ai, ai – até que enfim -, que
sufoco, que agonia, não aguento mais tanto jejum, e lá se foi mais uma
Sexta-Feira Santa. Ainda bem. Hoje já é Sábado de Aleluia. Aleluia! Jesus vai
ressuscitar e lavar todos os pecados, (inclusive este meu), deste mundo –
mundano e imundo.
Tá tudo liberado. É Páscoa!”.
Pois é. Assim foi até o ano passado.
Em 2020 o mundo apenas - parou.
Talvez, O Crucificado tenha concluído:
já que por 2019 anos, ninguém atendeu ao Seu pedido - “Pai – perdoai-os; eles
não sabem o que fazem!”, porquanto continuaram a brincar de civilização, então,
Ele Mesmo decidiu mostrar quem manda na aldeia e mandou novo recado – uma “gripezinha”
(como diria apressada, ingênua e espontaneamente nosso considerado presidente);
e, Ele; simplesmente foi desacelerando, aquietando, silenciando, “desativando”
o mundo. Os mais resignados até taparam a boca com uma máscara. Prevenção ou
para não serem reconhecidos por Ele!?
Pensando bem, agora aqui, bem sossegado
e quietinho, quietinho; quem sabe tudo veio como uma forma de um novo pedido
Dele, – “Pai, perdoai-os, de novo; eles – realmente - não sabem o que fazem!’.
Pelo que concluo: ou muda tudo, tudo, tudo
e tudo, agora, desta vez – porque, talvez, na próxima Ele não peça. Ele apenas
aperte o botão de delete. E aí não sei se o Pai Dele (e nosso) estará disposto
a trabalhar mais sete dias. Até lá, nós, com certeza - como diria padre Antonio
Vieira -, já seremos pó deitado.