domingo, 26 de abril de 2020

O Atlântico e o Tuta do 14!



* Para aliviar tempos de pandemia do Covid 19 e pandemônio político. E porque hoje é domingo, sem futebol de novo.

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Corriam os anos 1960, devia ser 1961; e meu pai e eu agarrado à sua mão, entramos num ônibus de torcedores do Atlântico, graças a Deus, ali em frente da antiga Baixada Rubra – hoje, o parque poli-esportivo e coisa e tal.
Era um domingo de sol forte. Na transbrasiliana a poeira levantava alta e densa porque o comboio de ônibus atlantistas passava de dez. Os panos encarnados se enfiavam pelas frestas das janelinhas enferrujadas dos ônibus e tremulavam ao vento.
‘Avante/Vamos para a luta/Salve o nosso pavilhão/Na vitória ou na derrota/Honremos nossa tradição/Atlântico, tu és poderoso...’ cantava-se dentro dos ônibus e sei lá eu em mais quantos carros particulares que podavam os coletivos assim como o Catarino Andreatta podava seus concorrentes nas corridas de rua em Porto Alegre. Quando chegamos em Getúlio Vargas, parecia que tínhamos feito uma viagem.
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Das portas dos ônibus, despencavam torcedores e nos portões a aglomeração era de surpresa. Mais surpresa, recolhi, guardei e nunca mais esqueci, foi ver que em mesmo número, no mínimo, ônibus e ônibus com placas de Passo Fundo, despejavam no largo do estádio Plácido Scussel, gente que nunca tinha visto nesta vida. Eram pessoas estranhas, mas igualmente enrolados em panos e bandeiras vermelhas – do 14 de Julho. A confiança deles era igual a nossa. No mínimo!
Atlântico e 14 de Julho jogariam naquela tarde de não sei mais quando nos anos 1960, o título da zona norte. Nos dois jogos anteriores, a igualdade se impusera, rigorosa. Uma vitória para cada bando – como se dizia à época.
O timaço do Atlântico, cuja base era de Paulinho; Tiassa, Garcia, Noronha e Fossati; Zé Carlos e Assis; Tomasi, Índio, Cardoso e Carioca, afora o grande Maneco e o Moacyr  – era a mais tranquila das convicções que, em campo neutro, não havia por que se temer o 14, mesmo que este também tivesse um grande time, com destaque para o meio-campista Santarém, o armador Meca, Armando Rebechi e o outro...
Aquele que vou falar depois. Que nunca mais esqueceria.
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O outro - que deixava nós atlantistas, com aquele friozinho na barriga, era um baixinho que jogava na ponta direita e andava pelo campo todo. Era difícil de ser achado, gostava e sabia fazer gols e, ainda por cima, jogava pelo setor do sereno e bom lateral esquerdo Fossatti, mas que às vezes... não tinha lá muita sorte.
O zero a zero já insistia em permanecer e levar tudo para a loteria dos pênaltis numa flagrante injustiça porque afinal, o Atlântico tinha time de sobra para ser campeão, quando, eis que uma bola metida do meio para a ponta direita em busca do baixinho de pernas tortas – o único que nos botava medo...
No atalho, surgiu o Fossatti, que num lance de absoluta indecisão e rapidez incalculável – entre deixar a bola bater na altura da sua barriga onde a sunga branca se dobrava por sobre o calção, ou então, deixá-la sair pela linha de fundo, retirando o corpo, instintivamente, talvez, querendo se proteger e na certeza que ninguém sequer notaria – amaciou a bola de couro cru com a mão. Parece que bateu, parece que não. Parece e parece... e alguém apitou.
Nossa Senhora de Fátima. Não é que o juiz viu!  Todo o estádio viu. Ou acha que viu. O certo é que depois do apito - todo mundo foi atrás da explosão da torcida do 14. O lateral ainda tentou tirar a mão assim como quem tentando arrancar um grão de uva em parreiral alheio e, flagrado, deixa instintiva e quase como se fosse uma brincadeirinha, o grão cair – mas, então; alguém já percebeu e aí  a gente fica vermelho, ameaça assobiar e não encontra nenhum lugar no mundo inteiro onde botar as mãos, brancas, trêmulas e molhadas de puro gelo. O famoso "deu um branco". Ou tudo foi apenas aparência?
Aquele juiz correndo em direção à marca branca de cal do pênalti, como alguém que tenta pegar um cachorrinho onde os cabelos e os pelos de ambos se deitam num desafio velocista contra o vento, foi como levar um tiro. Não. Não. Não é possível que ele tenha visto. O Fossatti nem queria botar a mão na bola. A gente via que quando ele tocou na bola ele já estava tirando a mão e pedindo desculpas. Fora um descuido. Será que aquele juiz não entende que o Fossatti só estava brincando?! O Fossatti achava que era treino! Para que deixar a bola sair pela linha de fundo – e depois ter de buscá-la? Não havia perigo de gol, risco nenhum ninguém ia pegar aquela bola. Ou, por um ajuste de contas – que não se sabe qual -, os deuses do futebol levaram ao encontro da mão do nosso lateral, pegando-o de surpresa!?
Todo o time do 14 de Julho, até os reservas, correram para abraçar e sufocar o baixinho de pernas tortas entendendo que ele provocara o nervosismo do lateral atlantista, induzindo-o a cometer o lance fatal.
Lá nas gerais do estádio do Tabajara Guaíba o vermelho e branco do 14 de Julho queria desabar as arquibancadas de madeira. No pavilhão e nas laterais da tela, verde-rubros não acreditavam no que viam: o time superior dentro do gramado, provavelmente por interferência divina não conseguira até então seu tento... e agora ali, todos há centímetros do desfecho inesperado, impensado, inimaginado, surreal, apavorante, aterrorizante porquanto podia ser visto, ali. Era verdadeiro o que estava acontecendo? Sim – era. Num jogo de dois iguais, um pênalti.... bem...
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Mais de uma dúzia de mulheres de cabelos ajeitados, unhas compridas pintadas de vermelho, cheias de pulseiras nos braços, quase todas afeitas ao vício do cigarro (ou seria só por nervosismo), agarradas à tela, gritavam palavras que eu não sabia o que significavam – mas que tempinhos depois fui descobrir que eram palavrões. Corria na torcida que eram da zona. Zona? Que zona! O que é isso!?
Deus do Céu, pensei eu... como este mundo é injusto? Meu pai, o velho e bom Alberto Mathias, que trabalhara a semana inteira na sua alfaiataria e que durante todos aqueles dias anteriores à decisão fizera na sua cabeça o seu próprio jogo e os gols atlantinos – parecia engolir o cigarro. Os fios da barba pareciam ter crescido ali no campo do Taguá. No rosto – o suor do último medo corria.
Depois de uns minutos quando o lateral verde-rubro já tinha se recobrado do seu ato, talvez irreversível dentro daquele jogo inesquecível – o juiz mandou o goleiro do meu Atlântico se postar sobre a linha final, e que dali, não se mexesse antes que o tiro fosse desferido.
O balão de couro foi parar então nas mãos do baixinho de pernas tortas, aquele que desde a semana inteira todos vinham se prevenindo como se fosse um pó dentro de uma carta: “Cuidado, que pode ser Antraz!”.
O baixinho tinha fama de rir. Mascava um chiclete com a bola debaixo do braço. Ele ria um... “agora vocês vão ver!” – era o que me parecia, aquele endiabrado vestido de vermelho. 
Acho que rezei duas, três Ave-Marias para Nossa Senhora de Fátima, mas devem ter sido pela metade ou aos pedaços, invertendo as frases, porque quando o baixinho de pernas minúsculas e engolidas pelo imenso calção branco correu para o balão de couro eu fechei os olhos. Eu pensei: Adeus tia Chica.
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Antes que seu pé direito esbofeteasse a bola assim como quem bate na cara do rival  mostrando quem realmente manda na prostituta, eu fechei e abri os olhos mais de dez vezes.
Só ouvia o trote do ponteirinho em direção ao balão de couro, seu imenso calção branco parecia que não tinha pernas, se ouvia a respiração do nosso Paulinho debaixo da goleira, na fronteira de Erechim, e lá de longe, vinha o barulho das águas do Abaúna. No céu azul, até o sol se deixou encobrir quase todo, provavelmente atlantista – não queria nem ver aquela cena. Ficara só com uma frestinha, expiando, porque aquele pênalti nem ele, podia perder.
Ainda num ato derradeiro e pessoal acho que botei o Paulinho ao lado de Deus, ou seria o contrário, como que querendo sob todos os impedimentos imaginários e possíveis – não permitir que aquele esférico de couro já lascado, passasse pelo Paulinho, furasse nossa fronteira, beijasse aquelas redes esbranquiçadas e se alinhasse no nosso último reduto.
Eu vi dezenas, centenas, milhares de pênaltis – não, milhares e nem centenas, menos, menos -, mas já vi sim, dezenas de pênaltis serem batidos para fora, ou no poste, ou nas nuvens. Quantas vezes vi o Paulinho, que até no Internacional jogou - defender pênaltis nos treinos do Atlântico. Em todas as marcas de pênalti, de todos os campos naquele tempo, havia um buraco. A bola quase nem se via – Santo Deus. Quantas e quantas vezes chutaram o chão e o gol não saiu!? Por que naquele dia, ali, aquele baixinho, haveria de pegar bem na bola e por que não poderia tentar colocar fraco? No canto do Paulinho? Ou a desgraçada bater na trave e sair? Por que não poderia aquele debochado ser castigado e desferir um balaço para fora, metendo a bola lá nas corredeiras do Abaúna e com as águas raivosas se escafedesse até nunca mais ser encontrada? Na lateral, o lateral do lance impensado porquanto quase infantil, se não engano - chorava.
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Mas quando as pernas tortas chegaram e o pé direito do Tuta agrediu a bola foi um “tuuummm” só;  seco. E não se ouvia mais o barulho das águas do Abaúna, o sol escondeu-se num milésimo de segundo atrás de uma nuvem como que – quem diz, não vi o que vi. Nem ele acreditava. Passarinhos e dezenas de outras aves se assustaram com a explosão da torcida do 14 - e levantaram voo dos arredores do campo do Taguá para não se sabe aonde. O foguetório foi tanto que uma fumaça parou a retomada da partida no velho Plácido Scussel – até ele assustado com o tamanho do evento.

O nosso goleiro Paulinho estava caído no canto direito da nossa última e extremada fronteira com o calção preto - marrom de poeira e um pedaço pintado com a cal branca do risco final. O balão de couro se aninhara rasante no centro do gol com espantosa violência, assim como um daqueles aviões do Taliban, que quando parecia que ia desviar de uma das torres do WTC, de repente, se redirecionou, e se mirou bem no meio do prédio – no meio para não errar o alvo e com o máximo de velocidade e violência – explodir tudo à sua frente provocando destruição jamais vista.
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Foi, sem nenhuma dúvida, não um gol. Foi sim, claro, um legítimo atentado contra o Atlântico. Como acreditar que aquele timaço poderia ser atingido e, derrubado, por um balaço de um atacante de mais ou menos um metro e meio de altura ou sei eu lá de quanto mais? - vestido de vermelho e com a número 7 às costas? Sim – aquele baixinho de pernas tortas e que a gente sempre desconfiara - foi o "nosso" algoz e do qual a Grande Nação Verde-Rubra deveria ter se prevenido com tudo quanto pudesse;  acionando todos seus arsenais de defesa que dispusesse porque ele tinha cara, tinha jeito e sempre dera demonstrações, tinha passado, de não simpatizar com o Atlântico. Era no fundo, inimigo do Galo e um dia, se assim os tempos lhe oferecessem, seria seu algoz. Como foi. E num episódio simplesmente histórico. Como também foi. Um evento histórico. Como foi e ficou.
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Muitos de nós – choravam. As mulheres agarradas à tela e que não paravam de xingar o juiz com palavras que mais tarde do tempo, ficaria sabendo também serem palavrões – não fumavam mais. Elas comiam os Tufumas e os Belmontes. “Vamo Índio... Vamo Carioca. Juiz f.d.p. Tua mãe tá... Agora, Índio, mete, mete, bate”. A zaga do 14 prensava a bola, toda vez que o Atlântico ia puxar o gatilho, e quando caía no pé do Santarém então – tinha que começar tudo de novo. Ele jogava apenas – demais. Acelerava, cadenciava ou simplesmente parava o jogo. Para os padrões regionais – um craque. O número 10 do 14. Até tirar a bola dele, pra recomeçar atacar de novo; o ponteiro dos minutos no relógio já estava tonto de tantas voltas.
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A despeito de toda as forças e de todos os meios e de todas as tentativas intentadas dali em diante até o apito final daquela jornada, o Atlântico não conseguira se refazer, e nem mudar o placar da dor impensada, jamais imaginada. Quando parecia que o Índio ia empatar tudo, selando atentado por atentado, surgia alguém do 14 e o balão de couro se perdia por entre os enormes eucaliptos, que se dobravam devolvendo brisa para aliviar quem sofria de dor ou de ansiedade. Até a bola, parecia que estava de complô contra o meu Atlântico - porque depois do pênalti, inúmeras vezes ela subia, subia, subia e depois, caía, caía, e vinha, devagar, muito devagarinho, batendo de galho em galho, demorando para voltar e rolar, ou voar para bem longe, de novo. Aquela bola de couro cru, com certeza, era de Passo Fundo.
Havia ônibus por tudo quanto era canto. Na Irmão Gabriel Leão e na Senador Salgado Filho a gente corria para dentro dos coletivos encolhendo a cabeça, fugindo dos foguetes que estouravam perto das nossas orelhas, largados pela torcida do 14. Perdemos numa infelicidade, era o nosso consolo. Ou – seria, em verdade, perdemos porque desligamos por um piscar de olhos e por isso mesmo, a nossa cruz ficou ainda mais pesada.
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Na volta as bandeiras não tremulavam mais. Estavam no corredor do ônibus. Não sei quantos f.d.p. foram ditos por quantas bocas – lamentando o lamento eternizado daquele lance, o legítimo lance sem explicação. Deu um branco, uma indecisão na hora decisiva no nosso lateral. Nem sonhando aquilo seria possível – mas parece que era o que tinha acontecido há uma, duas horas atrás, recém. Não havia replay. E na cabeça de cada atlantista, o lance ganhava contornos diferentes. Todos trágicos.
Fui dormir naquela noite ali na Jerônimo Teixeira, ao lado da Baixada Rubra – o sono dos abandonados por Deus. Ele estava conosco a semana inteira e dizia-me sempre, sim eu ouvia o Idylio Badalotti, o Tramontini, e o Dartagnan Pereira então, Santa Mãe, eles disseram e até repetiram a semana inteira que time por time o Atlântico era superior e mais que isso, só não diziam, porque seria uma falta de respeito – mas deixavam a gente pensar e sonhar que o Atlântico era imbatível naquela final. Só... se acontecesse algo fora do comum. Só se ocorresse uma tragédia. Só se... E não é que... Era só cuidar do Santarém, do Meca, do Rebechi e principalmente, do... do... do Tuta – aquele baixinho que se mexia e se colocava rapidamente. Fiquei com a impressão que tinha mania de argentino, era o que se dizia depois do jogo principalmente, e se estivesse ganhando o jogo então – a partida não andaria mais. E, além disso – ele ria e debochava. Será verdade ou isso veio ao longo do tempo por conta da raiva que fiquei. Por que ele não bateu aquele pênalti como o Baggio!?
Sim – eu dormi ou acho até hoje que dormi - mas na verdade, aquela derrota surpreendente, considerando os analistas da época; acordou comigo na segunda-feira e até hoje está na minha cabeça e, comigo irá, para o céu ou para os quintos dos infernos quando eu fizer como o sol e, num relance - me esconder para todo o sempre atrás de uma nuvem, que não só me encobrirá como haverá de me levar embora. Para sempre. (Se a minha cabeça ainda funciona, foi mais ou menos assim que tudo aconteceu lá em... 1961).  

PSComo reza o melhor “Manual das Rivalidades”, no ano seguinte, em 1962, o Ypiranga foi buscar o algoz do rival, Atlântico. Aí veio o troco. Tuta jogou quatro Atlangas com a camisa do Ypiranga. Empatou um e perdeu três. Mas nada, nada foi pior do que aquela derrota na “negra” em Getúlio. Dos Atlangas que ele perdeu, só pesquisando, encontrei. Mas aquela derrota, nunca me saiu da cabeça. O Tuta está na história do Atlântico como seu carrasco em uma decisão com a camisa do grande 14 de Julho de Passo Fundo. Por onde andará aquele pequeno/grande jogador – ao menos naquela decisão!? O “tuuummm” ainda está comigo.

PS - Inacreditavelmente encontrei uma foto do Tuta. E, pela foto, agachado, não era tão baixinho como o texto faz crer. Mas da linha de ataque era o mais baixo. De memória, porém, me parecia um atacante de porte físico pequeno - muito rápido.