(Nomes do casal são fictícios. Enredo, aparentemente).
1º episódio
Quando o
padre Válter Girelli chegou
ao Pai, Filho, Espírito Santo e Amém, o Armindo já fazia
o sinal da cruz e se virava
para deixar o santuário de Fátima.
Caminhando como sempre,
trazia à mão esquerda,
dona Nina, sua esposa há 46 anos.
O casais se
cumprimentavam
como sempre,
caminhavam meio encurvados
como sempre,
diziam as mesmas coisas
de sempre,
pediam se viria chuva
– como sempre,
seus automóveis estavam nos mesmos
lugares
de sempre e,
todos já sabiam o que fariam naquele
sábado à noite
e no domingo.
Como sempre.
Dona Nina só teve tempo
de dizer
rapidamente à sua comadre Lídia,
que já temperara o frango de forno,
e as batatas da maionese também
já estavam cozidas para o domingo
– como sempre.
Era certo que a filha Ana,
o genro Geraldo e os netos,
Jonathan e o Maicon,
viriam para o almoço
de domingo.
Como sempre.
Armindo caminhava
com cara entre carrancudo, desconfiado e ranzinza.
Puxava a perna esquerda e balançava todo
para a direita
quando a esquerda tocava o chão.
Como sempre.
Mas,
naquela saída da missa
no seminário,
havia um ‘quê!’,
como nunca houvera antes,
que apresentava um Armindo diferente.
Um latejar no peito e
na barriga além do normal.
E não era por causa do coração que
o dr. Serpa
o dr. Serpa
lhe consultava e cuidava a cada ano,
nem do peso,
nem da barriga que escondia
o cinto
com uma enorme pedra vermelha
que trazia desde moço...
e nem por cauda da diabetes.
Seu Armindo,
estava diferente,
naquele início de noite de abril.
Não era frio, mas nem quente
e, lentamente as luzes do santuário iam substituindo o
sol que despencava
por trás das churrasqueiras.
Seu Armindo tinha um ar de impaciência.
Parecia apressado.
Não – ele estava perturbado.
Parecia estar distante.
Mais do que de costume.
Estava com a cabeça, sabe-se lá aonde.
Não ria e nem olhava para os lados.
Havia tempo que ele
desejava
reviver emoções dos tempos de juventude,
algo que ele já dera como
sepultado entre ele
e sua Nina,
ele, sempre tão disponível para os
domingos em família,
domingos de tantos e tantos frangos de forno,
de massa, polenta e maionese,
de tantas e tantas missas de sábados
à noite no seminário.
Sábados que se perdiam no tempo.
Eram anos a fio dedicados à família,
ao trabalho
e ao seminário.
Sim – seu Armindo jamais recusara sua
presença,
seu labor e até
dinheiro se precisasse,
em favor da sua paróquia
- a paróquia do Santuário de Fátima.
Seu
Armindo perdeu no tempo às vezes que
trabalhou nas procissões de Fátima,
nos dias de romarias,
fazendo de tudo,
e até antes dos eventos,
durante a semana, vendendo
antes da festa – cucas,
bolachas...
fichas de carne.
Na reforma do Santuário,
ninguém, jamais, pode reclamar da
não presença e dedicação cem por cento
do seu Armindo.
Para ele, o Santuário era uma extensão
da sua casa.
No seu íntimo era até mais,
porque no Santuário encontrava amigos
e as conversas mudavam de assunto que,
há 46 anos sustentava
e, por que não,
penosamente - com a esposa,
dona Nina.
Sem que
ninguém lhe notasse,
naquela noite,
porém, seu Armindo viu;
sim era ela,
só podia ser ela...
ele viu por sobre as cabeças calvas
mal penteadas,
de cabelos ao vento
as mesmas de sempre...
um corte diferente,
incomum,
forasteiro para aquela cena da igreja
do seminário aos sábados à noite.
Como um raio,
Como um raio,
ficou meio em dúvida,
mas logo aceitou como certeza:
não era nada da sua cabeça e sim,
estava acontecendo.
Seu Armindo
não podia lhe ver as faces,
mas,
dando asas à sua fértil imaginação,
logo se deparava com lábios
grossos
e convite,
com um decote aberto expondo peitos
salpicados de manchinhas
e belezas bem distribuídas
como que
num mar de charme.
Por certo,
adereços,
sobre obra de arte.
Armindo se
esgueirava,
arrumava a calça na altura dos joelhos,
em disfarce,
ameaçava despertar, apertar e
remexer o cinto,
botava as mãos nos longos bolsos
apertando o panfleto da missa,
e
apertando o panfleto da missa,
e
girava o grosso molho de mil chaves;
enquanto espichava o pescoço tentando
contornar as cabeças de sempre
que lhe tiravam da visão,
dela,
a vizinha do 7º andar,
que só ele lhe sabia o andar,
ela,
misteriosamente sempre tão só
e tão,
mas, tão sensual e aparentemente,
não, aparentemente é ilusão,
tão escancaradamente carente.
Seu Armindo tinha certeza que só
ele sabia sobre ela,
e
só ela, sabia sobre ele,
sobre como ele sentia.
Sua cabeça estava em turbilhão.
Por um momento achou até que
a cabeça da Santa se virou para ver
o que acontecia – mas essa foi uma impressão
sobre a qual jamais poderá ter certeza.
Mas que teve a sensação,
teve.
Ele caminhava na direção do seu Corcel II,
a perdeu de vista.
a perdeu de vista.
“Não é possível!” – rosnou consigo mesmo.
No sermão do padre
Válter,
dona Nina acomodou suas celulites
bem ao par das ancas nervosas,
naquela noite,
do velho, dócil, afável e fiel companheiro.
Enfiou, como o algoz que enfia
sua espada na barriga do bandido
nos épicos romanos,
sua mão e braço por entre o braço esquerdo
do eterno marido, pai e avô
– mas seu Armindo nem percebia,
parecia absorvido, anestesiado -,
porque dentro dele havia alguma
coisa viva
que queria lhe saltar para fora.
Ele não conseguia mais segurar.
Nem cogitava que poderia enfartar.
Só a mão cheia de remédios que tomava
todas as manhãs – poderia lhe garantir.
Quando a
vizinha sensual volveu
a cabeça ligeiramente para o lado,
para o lado do seu Armindo,
e uma pequena mecha do cabelo curto,
e bem cuidado, lhe caiu por sobre
a vista direita,
deixando à mostra o pescoço com leves
e insinuantes fios pretos a lhe enfeitar
e insinuantes fios pretos a lhe enfeitar
aquele pedaço lânguido de nuca,
seu Armindo achou,
não,
achou era pouco;
ele tinha certeza que ela,
a vizinha, hóspede da sua angústia,
também lhe procurava.
Seu Armindo meio que se
engasgou
com o que ele achava ter sido
o olhar dela por ele, mas no fim
o engasgo veio por conta
do muito sonhar,
produto da sua imaginação,
e então ele quase teve,
repentinamente, um acesso de tosse,
que com muito esforço ele conseguiu engolir.
Foi um
acesso tão preocupante,
a ponto do seu Armindo ter de ser
socorrido
pronta e oportunamente,
como só uma companheira
de 46 anos de união sabe fazer.
Ela, entre um e outro olhar, balbuciou:
Negro...
Negro...
o que te tu tem? Paaara com issso!”,
A insistência de dona Nina e alguns tapões
nas costas depois,
conseguiram trazê-lo de volta à respiração,
acalmá-lo e salvá-lo,
embora
vermelho e vertendo lágrimas
de engasgo e,
de vontade,
mas ninguém,
nem os Santos dos vitrais,
lhe desconfiavam o porquê!
Tivesse escapado a tosse nestes tempos
de coronavírus, seria o fim da missa,
de coronavírus, seria o fim da missa,
porque não sobraria um cristão
na remodelada igreja do santuário.
Mas não.
Seu Armindo só tinha um pensamento: a
vizinha tinha lhe procurado com os olhos.
Ele contava os minutos.
Não. Minutos é muito tempo.
Ele contava os segundos,
as partes,
as divisões da missa para que tudo
voasse direto para a hora da comunhão.
Então sim
ele iria lá na frente
e na volta passaria por ela,
sensual e carente,
que também, imaginava,
sonhava dia e noite com ele.
Então, aí poderia lhe atirar o olhar
de peixe vivo
- com todas as suas pretensões,
que só ele contava que ainda tinha.
Como podia, pensou
Armindo,
viver, tantos e tantos anos,
de sábado a sábado,
de missa a missa
de domingo a domingo,
de frango a frango
até ali;
sem cor,
sem sonho,
sem riso,
sem imaginação,
sem sabor,
sem uma nesga de tentação
– sem um tiquinho de emoção!?
Estaria morto ou teria sido
sepultado vivo
– seu interesse pelo alheio?
Não. Naquela missa estava provado,
que não.
Ele ainda vivia.
Quando o
padre Válter levantou
o cálice
e a hóstia consagradas,
convidando a todos para receber
o corpo de Cristo,
Armindo já foi saindo do
banco apertado.
Na pressa enroscou o sapato direito
e trancou a saída.
Desajeito e transtornado pela volúpia,
o celular lhe caiu da cinta,
se desequilibrou
e sua carteira, caneta,
e sua carteira, caneta,
pente e
dinheiro,
lhe caíram do bolso da camisa.
Perdeu tempo,
e a vizinha já lhe tomara a dianteira
e caminhava agora,
no alto
dos seus saltos,
de ombros levantados e
a cabeça,
encoberta por um véu negro,
levemente descaída
em sinal de respeito,
lá na frente.
Armindo queria
apressar a fila,
ia cutucando quem lhe estava à frente,
queria furar a fila,
queria correr e olhá-la nos olhos
– mas era impossível.
Além do mais,
ele ficara espremido entre duas
avantajadas, veteranas, pacientes
e quase sonolentas,
senhoras de boa idade e,
sua Nina. (Amanhã – o 2º e último
episódio)