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Certa feita, pesquisadores
e discentes do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da URI foram em expedição
ao Chile visando coletar dados sobre espécies invasoras daquele país, bem como
analisar dados de distribuição de espécies invasoras no Brasil. Em especial, o
trabalho buscava uma compreensão maior sobre a distribuição e modelagem de
nicho da Uva do Japão, uma espécie arbórea muito conhecida e utilizada no Alto
Uruguai, para diversas finalidades.
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Por se tratar de uma
espécie invasora, os pesquisadores queriam entender o impacto que esta árvore
pode trazer aos remanescentes florestais no sul do Brasil.
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Antes disso, um grupo
de pesquisadores permaneceu junto à URI por cerca de dois meses. Depois, com a
expedição ao Chile, os pesquisadores brasileiros visavam modelar a distribuição
mundial da árvore e, em especial, no sul do Brasil.
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Eu não lembro de uma
concentração maior, de pés de Uva-Japão, do que havia nos anos 1960/70 atrás
das arquibancadas à esquerda do pavilhão, ou, como queiram, 'na goleira de cima' do campo do Atlântico que dá para a Torres Gonçalves na velha e extinta Baixada Rubra, no centro da cidade. O mesmo que... 'falecido' foi. (Para quem não é de hoje... os as árvores ficavam onde hoje estão as churrasqueiras do parque poli-esportivo).
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Nunca contei e nunca
ouvi falar quantas árvores seriam, mas com certeza somavam dezenas. Quando a
fome batia ou seria só vontade de mastigar alguma coisa, não se corria ao
mercadinho mais próximo para alcançar o salgadinho da hora, nem o refri, pastel
ou sanduíche natural. Nada de chatear os pais por um dinheirinho para comprar
isso ou aquilo. Que nada. Pra que industrializado – se a naturalidade era a Uva-Japão!?
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Quantos gols aqueles
pés de Uva-Japão devem ter testemunhado na Baixada Rubra? E quantas uvas nós
apanhamos em fins de treinos quando o técnico botava os atacantes para testar a
pontaria que era para ser no Miguel, no Paulinho, no Popy, no Valdir (goleiros do Atlântico na minha infância) – e vá Uva-Japão descendo dos galhos para nossas mãos, por conta da falta de pontaria dos
atacantes verde-rubros.
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Como a Uva-Japão veio
parar com tamanha presença no Alto Uruguai é o que os pesquisadores da URI e do
Chile pretendiam descobrir com aquele intercâmbio. Na Baixada nem precisam mais
ir, porque lá, não só as uvas como as árvores foram engolidas por projetos mais
modernos. Se alguma coisa sobrou talvez tenha sido em nome de outra modernidade:
preservação da natureza – ou pelo fato que agora se pesquisa: trata-se de uma
espécie perigosamente invasora, que reduz a diversidade das matas nativas e se
multiplica rapidamente. Que tempos eram aqueles!
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Sentado na arquibancada
de madeira e a 10 metros
do Tomasi, do Noronha, do Índio, do Garcia, do Tiassa, do árbitro, da copa do Alemão Preto e suas
Serramaltes, do amendoim do ‘Véio Gravi’, do cheiro de éter nas pernonas e
canelas dos atletas, e do gramado. Tudo, tudo sob a sombra fechada das folhas
verde-escuras dos pés de Uva-Japão – ou como diz a nomenclatura oficial – Uva
do Japão.
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Invasoras ou não, me
foram úteis para encher a barriga no meio das tardes, entremeadas com os
coquinhos cor do Ypiranga em dia de sol. Quem diria que um dia faria matéria
para a imprensa a respeito de pós-graduandos de uma universidade indo ao Chile
para tentar descobrir mais coisas sobre a Uva do Japão?
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Mas uma coisa eu
garanto: mesmo que não fosse matéria para universidade, um dia, eu acabaria
escrevendo sobre aquelas frutas com formato de dedos destroncados, levemente
encorpados e adocicados que nos 'matavam a fome', ou enganavam a barriga. E ainda
por cima era Uva-Japão até encher e, de graça!
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O mundo pode não ser mais o mesmo dàqueles tempos. E não é. Alias, não é nem sombra do que foi. Quem viveu aquilo, não obstante, pode bater no peito que não precisa ir ao Chile para saber sobre as Uva-Japão. Embora os pés de Uva-Japão da falecida Baixada Rubra também tenham sido abatidos tal qual rês no extinto matadouro do Progresso, ou dos frigoríficos da saudosa Cotrel, em nome da economia, de saciar a fome, dos mercados além-estado, ou, até, digamos - do avanço, do novo; a memória, sim - esta, sempre ela, escapa às facas e facões, adagas ou serrotes, machados ou retroescavadeiras, pela singela razão que de intengível, assim o ser como o vento, como o ar que nos mantém vivos.
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E assim como se lembra ainda hoje das extintas Uvas-Japão da Baixada, um dia haverá de lembrar - talvez com igual ou maior reverência - do que veio para tirá-las de cena e expulsá-las do grande palco da vida citadina.
Pequenas ou grandiosas alterações da paisagem daquilo que foi e, sem importar as razões, a memória, sempre ela - ainda reina e haverá de reinar como um patrimônio; que de ninguém pode ser tirado, modificado ou sacrificado.
Ela, sempre ela, a memória, nos representando mais que teoria - um lenitivo de calmaria à nossa consciência, às nossas lembranças, ao nosso passado, ao nosso coração.
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Quem se lembra das Uvas-Japão da Baixada?
Eu.
Eu me lembro.
Obrigado por fazerem parte da minha vida.