sábado, 4 de abril de 2020

O tormento do seu Armindo! (2)



2º episódio
(Nomes do casal são fictícios. Enredo, aparentemente).

(Armindo queria apressar a fila,
ia cutucando quem lhe estava à frente,
queria furar a fila,
queria correr e olhá-la nos olhos
– mas era impossível.
Além do mais,
ele ficara espremido entre duas
avantajadas, veteranas, pacientes
e quase sonolentas,
senhoras de boa idade e,
sua Nina...).


O coral das mesmas vozes de sempre
embalava o ato litúrgico e solene,
e tudo se encaminhava para o seu fim,
como sempre; mas seu Armindo
tinha vontade de irromper aos gritos
e dizer da sua louca vontade
que lhe fazia verter suor em pleno
sábado à noite de 15 graus.
Por um instante lhe veio à mente o
filme - Um dia de fúria.
Como ele queria aquele rifle, não,
o rifle não.
Como ele queria aquela coragem de
saturado e rebeldia total de
Michael Douglas.

Quando a sua vizinha,
não,
vizinha é comum demais.
Quando a sua diva,
a sua santa,
comungava lá à frente,
Armindo teve de parar
porque
um homem
alto e de bengalas,
lhe pedira licença para entrar na fila.
Não. Aí já é demais.
O seu Antonio, seu compadre, compadre
que se recuperava de uma cirurgia da bacia,
que esperasse.
Seu Antonio foi surpreendido com a indelicadeza do amigo,
e não fosse sua bengala e o neto Jr.
teria caído entre os bancos.
Tresloucado
por dentro,
e ao descuidar por um segundo da sua,
agora sim,
já amada – amante;
foi o suficiente para ela fazer
o contorno
num toc, toc, toc e toc
do salto sensual,
e quando Armindo percebeu,
a vizinha já lhe vencia as costas.

Como virar-se em plena fila da Santa Comunhão,
virar-se e tentar localizar com o olhar,
a diva das pernas longas,
da saia negra,
dos braços finos e crispados
de finos e densos cabelinhos aloirados?!
Seriam pintados? Não – uma mulher assim
não se pinta.

Corpo de Cristo,
Corpo de Cristo
– repetia o padre
Válter -,
e quando seu Armindo deu por si,
entre a boca carnuda, 
os bracinhos crispados,
o tórax comprido,
o pescoço enfeitado
de fiozinhos grudados à pele
e
as pernas compridas
espremidas
por fina, longa,
mas bem comportada saia –
ele só teve tempo de aparar a hóstia
na mão
e dizer ‘Amém!
Foi uma Amém como, nunca, nunca;
jamais dissera em
cerca de 2.500 comunhões ao longo
de 46 anos de matrimônio e
quase 30 e poucos de solteiro.

Ele estava na fila da direita,
e a vizinha caminhara pela esquerda
da igreja
rumo não mais ao seu lugar,
mas agora,
buscara o fundo da igreja.
Por quê? – perguntava-se seu Armindo.
Teria algum compromisso para sair logo,
na frente de todos?

Armindo teve de conformar-se,
e arrastando-se atrás das duas pacientes senhoras,
com seus grossos escapulários no pescoço
e peitos caídos,
suportava também os passinhos
do compadre Antonio,
com sua bengala,
que fora comungar em outra fila,
mas agora,
se atravessava de novo à sua frente,
além da sua companheira de 46 anos e,
perdido e transtornado,
– rumava até o seu lugar de todos
os sábados.
Era gado recolhido do potreiro para a
estrebaria
 – onde cada cabeça segue direto,
sem necessidade de orientação,
ao seu paradouro de confinamento.
Como sempre.

Nem lembrou-se de ajoelhar,
e logo retomou suas guinadas
e ameaças de tossidas
virando-se ora à direita,
ora à esquerda,
tentando encontrar sua paixão
– mas tudo em vão.
Teria ela ido embora sem a benção do padre Válter? Não – isso não combinava.
Aquela carne viva de tudo querer,
que saíra do seu apê
em pleno sábado à noite para uma missa,
com certeza,
educada como devia ser
para ficar-se à altura da própria beleza,
ela,
a diva ficaria até o final.
Não faria uma desfeita ao sacerdote,
aos  presentes,
a Deus e,
imaginava seu Armindo,
não, ela não lhe faria aquela desfeita de
sair sem ser notada de novo.
Ele não podia voltar para casa, 
naquele sábado
sem que,
seus olhares se cruzassem de novo
como se por acaso tivessem se cruzado.


Depois dos avisos da semana,
das recomendações de cuidados,
e dos elogios ao Grêmio e um momento de
descontração
- como sempre;
quando o padre Válter iniciou
com a mão direita o “Padre, Filho... Ide em paz e Deus vos acompanhe!”,
seu Armindo já estava com a pé esquerdo
no corredor,
de costas para o altar,
e enganchado à sua companheira,
de sempre,
puxava a fila da saída.

Olhava, olhava e esgueirava,
por cima,
por baixo,
pelos lados,
por entre cabeças,
braços, troncos e corpos
 – mas nada.
Nada da vizinha,
da diva,
da amada,
da amante  imaginária.
Nada da sua loucura daquela noite.
Nada da paixão que lhe cegara tudo o mais.
Seria de novo! – como sempre?

Quando chegava ao seu Corcel II,
e dona Nina já batia na porta,
atirando-lhe, aparentemente,
um suave 
- “vamo Negro!... abre essa porta
que tá ficando frio. Brrrrrrr
Má o que que te deu hoje?
... tá cá cabeça nas nuve?!”,
foi aí que seu Armindo viu,
lá na saída do largo
– já dobrando para Sete,
ela,
imponente,
linda,
erguida,
alta,
viva
– a sua paixão em carne e osso.  

Quando, apressado,
tocou o arranque e
o Corcel II negaciou pegar,
Armindo ameaçou blasfemar 
porque sentiu que seria um dos últimos,
como foi;
a deixar o largo do seminário.
Não a veria mais naquela noite.

Não. Não podia ser verdade.
A bateria se negava 
e as luzes da igreja
já tinham se ido também.
Teve de contar com a ajuda do guarda
e da sua velha e,
eterna companheira,
que empurraram o Corcelão,
que só pegou
na descidinha em direção
à entrada de onde era a UFFS,
no seminário.

É sempre a mesma coisa, Negro!
Segunda tu vai cedo no Arno
e se tivé que trocá a bateria,
tu troca duma veiz
porque não aguento mais essa vida!”, 
repreendeu sua veterana e fiel dama 
real
dos últimos 46 anos.

Assim... 
é também nestes tempos de confinamento.
Como seu Armindo,
muitos têm, mais que vontade,
necessidade de mudar a rotina,
mandar o sofá,
a TV,
o chimarrão,
a cozinha,
a cama,
as pipocas,
o cachorro,
enfim,  
a casa às favas,
– e arrombar todas as contidas vontades.

Mas como seu Armindo,
com as razões pessoais de cada um,
no fim das contas,
a maioria não passa de idealista sonhador,
berrando por whatsapps,
vontades que não se realizam
porquanto,
por azar ou submissão às rotinas,
se conforma  e,
como uma vela em fogo - queima
até encontrar seu ocaso.
Como sempre.

Armindos,
resignai-vos com a última imagem
de sonho,
de paixão e,
ficai com a lembrança longínqua
a dobrar a curva de todas as Setes,
que se despede
erguida,
alta,
de cabeça em pé,
independente,
decidida,
viva,
e só.

E já que não há
coragens suficientes para mudar
e tornar reais,
escondidas vontades,
só resta,
o Corcel II.
Só resta empurrar a vida
como ela é.
Como sempre.

Quando jogou o chaveiro,
com um grande enfeite de metal do Grêmio, 
sobre a mesa no seu apê,
como sempre;
seu Armindo estava desolado
e nem se importava
estar no grupo de risco
do coronavírus.
“Talvez fosse melhor...”, conjecturou,
mas, logo pensou no frango,
na massa, na polenta e na maionese
de domingo.
E, principalmente, nos netos.

Foi para a sacada e acendeu o charuto,
o mesmo que deixara quase pela metade
antes de ir à missa.
E apesar de tudo que sonhou e imaginou
e nada se fez;
como que voltando a si,
puxou fundo a primeira tragada e,
numa espécie de consolo,
daquele que perde um campeonato que achava vencido - assistiu,
a fumaça dançando e se desfazendo à sua frente,
enchendo o ar de surpreendente calmaria.

“Madonna – pelo menos
saí do seminário sem jogar a culpa
na Nossa Senhora”, conformou-se.
“Mas faltou pouco. Que tormento!”.
E abrindo sua primeira Schin
- com sempre,
considerou
que melhor era deixar assim.
Afinal – nada,
nada era mais importante,
nada valia mais à pena,
nada podia se comparar,
nada chegava nem perto,
nada, nada, nada...
podia lhe dar mais prazer
do que
a convivência com os netos. 

Quando secou a quarta Schin,
Armindo deu sinal de vida da sacada:
- Nina... Ôôôô Niiinnnna...!
- O queeee é Neeegro. Tô vendo a Zora Total...
- Ôô Ninna... Por acaso, tu não sabe quem é que vai rezá a missa sábado quem vem?
- Que missa Negrooo. Tu não viu que o padre disse 
que agora,
 por um tempo, por causa da gripe nova 
– não vai ter missa... O padre Antoninho que deu a ordem pra todas igreja... 
Agora vamo ficá em casa um quanto sábado 
- direto Negro.

Sem resposta
dona Nina continuou vendo televisão.
Como estava tudo muito quieto,
15 minutos depois ela foi ver
o que se passava.
Ao chegar na sacada levou um choque:
“o seu” Armindo, que em casa, ela carinhosamente chamava de Negro
– aparentemente estava desfalecido,estendido
na cama do vovô. Mas em contraponto, 
respirava ofegante.

“Negroooo de Deeeuus. O que tu tem 
– Nossa Senhora de Fátima! 
Eu vi na igreja que não tava nada bem. 
Negro. O Negrooo, fala comigo! 
Vô chamá a ambulância da prefeitura...”.
Ele apenas sussurrou 
abafado por um acesso de tosse enquanto o 
pitoco do charuto apagado lhe caía ao chão: “
Nãããoo Nina. Não. Não precisa. 
Só pega meus remédio da pressão. 
Ligero. Ligeeero!”.