* Este ano de confinamento, também é o dos 50 anos do Colosso da Lagoa.
Aqui, um dos grandes momentos do Canário em seu estádio.
Afinal, hoje é domingo, o dia do futebol. Como não tem - lembremos.
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I -
Quando
o Brida foi calçado dentro da área no momento em que, inacreditavelmente, a
bola lhe sobrava como um maço de dinheiro que se acha perdido no bolso de uma
roupa esquecida, e o Vinícius Costa da Costa, de frente, apitou, e se inclinou
com uma perna encolhida e a outra esticada e com o braço estendido, mais duro
que nas melhores continências reverenciadas a um certo líder sanguinário do
passado, para a marca do pênalti, eu levei os olhos ao céu e pensei comigo
mesmo: sim, o Valério (Schillo) está vendo o jogo!
Claro, porque do jeito que as
coisas andavam entre Ypiranga e Brasil (Farroupilha), domingo e já no 2º tempo,
o time sentindo as ausências, errando passes, nervoso com o peso da cobrança de
18 mil bocas que gritavam da arquibancada, e com o Brida sem ritmo, tudo
indicava que – se não perdesse -, já não seria tão fora de consideração.
Enquanto o Brasil cercava pela
frente e pelas costas o Costa da Costa, pedindo que voltasse a história,
procurei o Vagner. Sim, porque com ele, era gol. E o encontrei caminhando pra
cá, pra lá, com a bola embaixo do braço. Quando vi – decidi: gol.
Mesmo assim, não quis ver. Baixei
os olhos na cabine e esperei pelo xuááá. A bola quando entra e pega na rede faz
xuááááááá. Mas esperei, esperei, esperei e ouvi o apito do Vinícius e foi -
tuuuuuuummmmmmmmmm. Tuummmm? – me perguntei! Como tuuummmmmm!? Mas devia ser
xuáá! Não resisti e ergui o olhar e a bola vinha caindo o céu e alguém a tirou para
fora do Brasil.
Eu que conheço o Colosso há 37
anos, segunda fará 38; nunca soube – mas domingo descobri que ele tem mãos.
Logo depois do tuuuuuummmmmmmmm, o Colosso botou as mãos na cabeça não
acreditando no que tinha visto. O time desfalcado, jogando mal, nervoso, contra
uma touca e tudo se encaminhava para um desfecho infeliz, postergando uma festa
impostergável.
O estádio se sentou com a cabeça
enterrada em 36 mil palmas de mãos.
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II -
De
manhã, dia dos pais, saí às 10 horas para comprar ingresso para o meu filho
Eduardo. Na Sete, chapéus de catar ovo, almofadas, gorros, radinhos, bandeiras
de ‘O grito do Ypiranga!’, misturavam-se a coloradas e tricolores. Carros iam,
vinham e paravam. Mulheres desciam e com os filhos escolhiam a bandeira e saíam
de novo em desfile com o pavilhão verde-amarelo tremulando na janelinha. Plat,
plat, plat, plat, plat, plat, plat – fazia o pano das cores nacionais, Sete
acima, tocada pelo vento.
Na portaria do estádio encontrei uma
fila. Eram 10 da manhã e havia fila. Era hoje. Tinha de ser hoje. Não podia e
nem seria em outro dia. Era demais a mobilização pelo feito canarinho, quando
ainda nem as churrasqueiras ardiam cidade afora.
Às duas da tarde o movimento era de
jogo grande.
Na cabine da Difusão, o Idylio
Badolotti me chamou e conversamos sobre a decisão, ao lado do dr. Edson Machado
da Silva. Lembro que entre outras coisas disse: ‘o Diego, a melhor coisa que
apareceu no Colosso em 2008...’, quando o Amilton, mostrando toda a sua
versatilidade, cortou lá debaixo e fez o raio cair: ‘seu Idylio, seu Idylio...
vê se vocês reconhecem esta voz...!’.
E foi então que entrou: ‘meu caro
Idylio... meu caro Amilton, meus caros ouvintes da Difusão...’ e logo o Idylio
também cortou: ‘Tramoontini!’. Não é que até o eterno Tramontini da velha rádio
Erechim esteve no campo? Ainda brinquei: ‘hoje podemos reunir o Tramontini, o
Ceni e o Milton Doninelli!’.
Subiam às cadeiras homens e
mulheres que nunca vira antes. O eterno ypiranguista Chico Pungan, trazia com
familiares, o Celeste Dal Prá. Apoiado numa bengala alta subia os degraus em
busca de uma cadeira. Sociais cheias. Lá embaixo as arquibancadas iam sendo
tomadas como o sol que vem sobre ipês e pessegueiros quase ao final dos
invernos, e vai se esparramando e enchendo de luz tudo o que vê pela frente,
sem a menor possibilidade de ser contido.
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III -
Quando
Pelé fez a bola passar pelo meio das pernas do Jadir naquela quarta-feira, 2 de
setembro de 1970, e fuzilou o goleiro Breno, fazendo levantar o estádio do
canarinho, nem naquela noite havia tanta gente como já se via no Colosso
faltando 15 minutos para o adeus do Ypiranga à Segundona.
Eu não sei de onde esse Brasil de
Farroupilha tira tanta gana quando vê o Ypiranga pela frente. Fazia uma semana
que o time serrano tinha sido surrado nas Castanheiras pelo Pelotas, que
apanharia do canarinho três dias depois. Será que o Brasil, por verde e
vermelho, será que é por isso que ele se agiganta contra o Ypiranga? Haveria aí
um grau de parentesco com o falecido Atlântico do futebol de campo?
O fato é que a partida ia pau a
pau. Se o Brasil não era um Milan para o Ypiranga, o canarinho não se
encontrava e, maltratando a bola pelo passe errado; enervava o anseio coletivo
que tinha todas as certezas do mundo de que seria naquela tarde, não se sabe
como, que o tabu seria quebrado e a Primeirona festejada até a noite alta cair.
Houve gol anulado do Brasil (e bem
anulado), mas o ar primaveril que banhava as 18 mil cabeças no Colosso,
encontrava uma estranha resistência, como que decretada pelo destino. Algo como
Brasil e Uruguai, Inter e Olímpia, Fluminese e LDU. Não podia de jeito nenhum,
deixar de acontecer a festa tão ao alcance da vaga, mas os deuses pareciam
conspirar. Estariam apenas brincando, se divertindo, fazendo o estádio suar
gelo, ou, a praia ficava ali mesmo, no entorno da lagoa que deu origem ao nome
de guerra do Colosso em vaticínio do dr. Wilson Watson Weber, em discurso
durante churrasco de recepção a visitantes no fim dos anos 60 no pavilhão em
construção.
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IV -
Aos
31, aos 35, aos 38, aos 42, eu tinha jogado a toalha. Eu sei do velho ditado
que o jogo só acaba quando termina – mas, as coisas estavam com ar, jeito e
cara de impossíveis. Por isso tratava de confortar o desconforto tentando
ressuscitar que apesar da frustração, ainda havia dois tiros: o TAC e o Guarani
de Venâncio, para derrubar a Segundona.
Eu não sei como o Pito foi parar
dentro de campo naquele jogo. Só sei que quando ¼ do estádio já estava nas
vicinais da Sete para escapar ao engarrafamento, o Pito foi se intrometendo
como um anão de circo, e meio despercebido, mas comandando o espetáculo; e de
repente ele descobriu ‘a melhor coisa que apareceu no Colosso em 2008’, e o
Diego arrumou na perna boa e disparou um canhão assim como as tropas russas
fizeram naquele mesmo dia na Ossétia do Sul.
O tiro seco e inapelável fez o
estádio explodir. Nem o estrondo do intervalo que estourou vidros nas cabines
de rádio conseguiu lembrar o que veio com o disparo de Diego. Ali não foi nem
xuááá – mas um xuuáááááááá antecedido por um tuuuuuummmmmm. Quando vi, a bola
estava quieta, desmaiada, desfalecida, morta no fundo das redes, não, no fundo
das redes não, no fundo da 2ª Divisão.
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V -
O
estádio pulava sobre si mesmo.
Os choros de alegria não tinham
vergonhas, sim, porque vergonhoso seria tentar segurar àquela hora um mar de
água que desce com o estouro de uma barragem.
Quando o Diego e meio time saíram
correndo ao alambrado, querendo escalá-lo e pulá-lo para os braços da nação
verde-amarela, outra revelação do futebol erechinense de 2008, o bom repórter
Tiago Ávila, conseguiu fazer eco ao que gritava Diego colocando na sua boca o
microfone da Erechim. ‘É pro meu pai, é pro meu pai!’, gritava tresloucado o
autor do disparo que matou a Segundona na vida do Ypiranga e colocou o clube na
Primeirona.
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VI -
Eu
não sei porque o Costa da Costa insistiu em dar mais 5 minutos, mas, quem
entende os árbitros!? Escaramuças ainda se ensaiaram entre os atletas, tudo
porque quem havia ganho o céu de presente assim como o bom ladrão que
arrependeu-se na hora ‘H’; este não haveria de querer sentir o calor do
inferno. E isto deve ser compreendido, pois quem, em sã consciência, em não
sendo nem Adão, nem Eva – haveria de entregar o paraíso como se nada fosse?!
Quando o árbitro encontrou o fim da
partida, nove anos ficaram para trás naquele prrrrrrrrrrrrrrrrrrrr. O Banana
pulava como só o Banana pode pular e rolar, porquanto o seu time, a despeito de
crises e derrotas, reabilitações e vitórias, jamais, perdeu a sua identidade, a
vergonha e a alma. Milhares de Bananas, num repente, rolavam pelo gramado do
Colosso, onde um dia já foi lagoa.
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VII -
Os
fios das emissoras de rádio eram recolhidos e enrolados e já se precipitava o
crepúsculo do fim de tarde. Da tarde do dia dos pais. Da tarde de 10 de agosto
de 2008. O Ypiranga, segunda-feira, 18, estará de aniversário e fará 84 anos.
Oito décadas e quatro anos de honra à sua origem, à sua tradição, à sua
história. 84 anos de honra ao seu fim, maior, principal e único.
E quando eu deixei o Colosso da
Lagoa e a brisa leve ainda levantava um papelzinho de bala aqui, um ingresso
amassado dali, senti que o banner com a figura de Valério Schillo, no hall do
Colosso, também recebeu uma golfada e se estufou quieta e rapidamente
chamando-me a atenção, como num ‘psiu, ô Ody!, psiu... eu não estava só lá em
cima. Hoje, eu andei pelas cadeiras, pelos banheiros, pela copa, estive lá
fora, dei a volta nas arquibancadas. Eu estava nos gritos do Amiltom, do Chico
e do Juliano Panazzollo. Estava no descortino do Pito e na perna esquerda do Diego,
na ôla e nas lágrimas de cada um dos 17.818. Eu estava no peito e no pulmão de
cada jogador. Eu estava na alma e no coração do Ypiranga. Agora – posso voltar
em paz. A missão está cumprida’.
‘Nas
planuras e serras tão lindas/Ypiranga, Ypiranga em louvor!/Quer na paz, quer na
luta bem-vindas/As vitórias da força e do amor!’.
A crônica de uma tarde anunciada
estava pronta.