domingo, 5 de abril de 2020

Ypiranga: crônica de uma tarde anunciada!



* Este ano de confinamento, também é o dos 50 anos do Colosso da Lagoa. 
Aqui, um dos grandes momentos do Canário em seu estádio.
Afinal, hoje é domingo, o dia do futebol. Como não tem - lembremos.


- I -

Quando o Brida foi calçado dentro da área no momento em que, inacreditavelmente, a bola lhe sobrava como um maço de dinheiro que se acha perdido no bolso de uma roupa esquecida, e o Vinícius Costa da Costa, de frente, apitou, e se inclinou com uma perna encolhida e a outra esticada e com o braço estendido, mais duro que nas melhores continências reverenciadas a um certo líder sanguinário do passado, para a marca do pênalti, eu levei os olhos ao céu e pensei comigo mesmo: sim, o Valério (Schillo) está vendo o jogo!

            Claro, porque do jeito que as coisas andavam entre Ypiranga e Brasil (Farroupilha), domingo e já no 2º tempo, o time sentindo as ausências, errando passes, nervoso com o peso da cobrança de 18 mil bocas que gritavam da arquibancada, e com o Brida sem ritmo, tudo indicava que – se não perdesse -, já não seria tão fora de consideração.

            Enquanto o Brasil cercava pela frente e pelas costas o Costa da Costa, pedindo que voltasse a história, procurei o Vagner. Sim, porque com ele, era gol. E o encontrei caminhando pra cá, pra lá, com a bola embaixo do braço. Quando vi – decidi: gol.

            Mesmo assim, não quis ver. Baixei os olhos na cabine e esperei pelo xuááá. A bola quando entra e pega na rede faz xuááááááá. Mas esperei, esperei, esperei e ouvi o apito do Vinícius e foi - tuuuuuuummmmmmmmmm. Tuummmm? – me perguntei! Como tuuummmmmm!? Mas devia ser xuáá! Não resisti e ergui o olhar e a bola vinha caindo o céu e alguém a tirou para fora do Brasil.

            Eu que conheço o Colosso há 37 anos, segunda fará 38; nunca soube – mas domingo descobri que ele tem mãos. Logo depois do tuuuuuummmmmmmmm, o Colosso botou as mãos na cabeça não acreditando no que tinha visto. O time desfalcado, jogando mal, nervoso, contra uma touca e tudo se encaminhava para um desfecho infeliz, postergando uma festa impostergável.

            O estádio se sentou com a cabeça enterrada em 36 mil palmas de mãos.



- II -

De manhã, dia dos pais, saí às 10 horas para comprar ingresso para o meu filho Eduardo. Na Sete, chapéus de catar ovo, almofadas, gorros, radinhos, bandeiras de ‘O grito do Ypiranga!’, misturavam-se a coloradas e tricolores. Carros iam, vinham e paravam. Mulheres desciam e com os filhos escolhiam a bandeira e saíam de novo em desfile com o pavilhão verde-amarelo tremulando na janelinha. Plat, plat, plat, plat, plat, plat, plat – fazia o pano das cores nacionais, Sete acima, tocada pelo vento.

            Na portaria do estádio encontrei uma fila. Eram 10 da manhã e havia fila. Era hoje. Tinha de ser hoje. Não podia e nem seria em outro dia. Era demais a mobilização pelo feito canarinho, quando ainda nem as churrasqueiras ardiam cidade afora.

            Às duas da tarde o movimento era de jogo grande.

            Na cabine da Difusão, o Idylio Badolotti me chamou e conversamos sobre a decisão, ao lado do dr. Edson Machado da Silva. Lembro que entre outras coisas disse: ‘o Diego, a melhor coisa que apareceu no Colosso em 2008...’, quando o Amilton, mostrando toda a sua versatilidade, cortou lá debaixo e fez o raio cair: ‘seu Idylio, seu Idylio... vê se vocês reconhecem esta voz...!’.

            E foi então que entrou: ‘meu caro Idylio... meu caro Amilton, meus caros ouvintes da Difusão...’ e logo o Idylio também cortou: ‘Tramoontini!’. Não é que até o eterno Tramontini da velha rádio Erechim esteve no campo? Ainda brinquei: ‘hoje podemos reunir o Tramontini, o Ceni e o Milton Doninelli!’.

            Subiam às cadeiras homens e mulheres que nunca vira antes. O eterno ypiranguista Chico Pungan, trazia com familiares, o Celeste Dal Prá. Apoiado numa bengala alta subia os degraus em busca de uma cadeira. Sociais cheias. Lá embaixo as arquibancadas iam sendo tomadas como o sol que vem sobre ipês e pessegueiros quase ao final dos invernos, e vai se esparramando e enchendo de luz tudo o que vê pela frente, sem a menor possibilidade de ser contido.



- III -

Quando Pelé fez a bola passar pelo meio das pernas do Jadir naquela quarta-feira, 2 de setembro de 1970, e fuzilou o goleiro Breno, fazendo levantar o estádio do canarinho, nem naquela noite havia tanta gente como já se via no Colosso faltando 15 minutos para o adeus do Ypiranga à Segundona.

            Eu não sei de onde esse Brasil de Farroupilha tira tanta gana quando vê o Ypiranga pela frente. Fazia uma semana que o time serrano tinha sido surrado nas Castanheiras pelo Pelotas, que apanharia do canarinho três dias depois. Será que o Brasil, por verde e vermelho, será que é por isso que ele se agiganta contra o Ypiranga? Haveria aí um grau de parentesco com o falecido Atlântico do futebol de campo?

            O fato é que a partida ia pau a pau. Se o Brasil não era um Milan para o Ypiranga, o canarinho não se encontrava e, maltratando a bola pelo passe errado; enervava o anseio coletivo que tinha todas as certezas do mundo de que seria naquela tarde, não se sabe como, que o tabu seria quebrado e a Primeirona festejada até a noite alta cair.

            Houve gol anulado do Brasil (e bem anulado), mas o ar primaveril que banhava as 18 mil cabeças no Colosso, encontrava uma estranha resistência, como que decretada pelo destino. Algo como Brasil e Uruguai, Inter e Olímpia, Fluminese e LDU. Não podia de jeito nenhum, deixar de acontecer a festa tão ao alcance da vaga, mas os deuses pareciam conspirar. Estariam apenas brincando, se divertindo, fazendo o estádio suar gelo, ou, a praia ficava ali mesmo, no entorno da lagoa que deu origem ao nome de guerra do Colosso em vaticínio do dr. Wilson Watson Weber, em discurso durante churrasco de recepção a visitantes no fim dos anos 60 no pavilhão em construção.



- IV -

Aos 31, aos 35, aos 38, aos 42, eu tinha jogado a toalha. Eu sei do velho ditado que o jogo só acaba quando termina – mas, as coisas estavam com ar, jeito e cara de impossíveis. Por isso tratava de confortar o desconforto tentando ressuscitar que apesar da frustração, ainda havia dois tiros: o TAC e o Guarani de Venâncio, para derrubar a Segundona.

            Eu não sei como o Pito foi parar dentro de campo naquele jogo. Só sei que quando ¼ do estádio já estava nas vicinais da Sete para escapar ao engarrafamento, o Pito foi se intrometendo como um anão de circo, e meio despercebido, mas comandando o espetáculo; e de repente ele descobriu ‘a melhor coisa que apareceu no Colosso em 2008’, e o Diego arrumou na perna boa e disparou um canhão assim como as tropas russas fizeram naquele mesmo dia na Ossétia do Sul.

            O tiro seco e inapelável fez o estádio explodir. Nem o estrondo do intervalo que estourou vidros nas cabines de rádio conseguiu lembrar o que veio com o disparo de Diego. Ali não foi nem xuááá – mas um xuuáááááááá antecedido por um tuuuuuummmmmm. Quando vi, a bola estava quieta, desmaiada, desfalecida, morta no fundo das redes, não, no fundo das redes não, no fundo da 2ª Divisão.



- V -

O estádio pulava sobre si mesmo.

            Os choros de alegria não tinham vergonhas, sim, porque vergonhoso seria tentar segurar àquela hora um mar de água que desce com o estouro de uma barragem.

            Quando o Diego e meio time saíram correndo ao alambrado, querendo escalá-lo e pulá-lo para os braços da nação verde-amarela, outra revelação do futebol erechinense de 2008, o bom repórter Tiago Ávila, conseguiu fazer eco ao que gritava Diego colocando na sua boca o microfone da Erechim. ‘É pro meu pai, é pro meu pai!’, gritava tresloucado o autor do disparo que matou a Segundona na vida do Ypiranga e colocou o clube na Primeirona.



- VI -

Eu não sei porque o Costa da Costa insistiu em dar mais 5 minutos, mas, quem entende os árbitros!? Escaramuças ainda se ensaiaram entre os atletas, tudo porque quem havia ganho o céu de presente assim como o bom ladrão que arrependeu-se na hora ‘H’; este não haveria de querer sentir o calor do inferno. E isto deve ser compreendido, pois quem, em sã consciência, em não sendo nem Adão, nem Eva – haveria de entregar o paraíso como se nada fosse?!

            Quando o árbitro encontrou o fim da partida, nove anos ficaram para trás naquele prrrrrrrrrrrrrrrrrrrr. O Banana pulava como só o Banana pode pular e rolar, porquanto o seu time, a despeito de crises e derrotas, reabilitações e vitórias, jamais, perdeu a sua identidade, a vergonha e a alma. Milhares de Bananas, num repente, rolavam pelo gramado do Colosso, onde um dia já foi lagoa.



- VII -

Os fios das emissoras de rádio eram recolhidos e enrolados e já se precipitava o crepúsculo do fim de tarde. Da tarde do dia dos pais. Da tarde de 10 de agosto de 2008. O Ypiranga, segunda-feira, 18, estará de aniversário e fará 84 anos. Oito décadas e quatro anos de honra à sua origem, à sua tradição, à sua história. 84 anos de honra ao seu fim, maior, principal e único.

            E quando eu deixei o Colosso da Lagoa e a brisa leve ainda levantava um papelzinho de bala aqui, um ingresso amassado dali, senti que o banner com a figura de Valério Schillo, no hall do Colosso, também recebeu uma golfada e se estufou quieta e rapidamente chamando-me a atenção, como num ‘psiu, ô Ody!, psiu... eu não estava só lá em cima. Hoje, eu andei pelas cadeiras, pelos banheiros, pela copa, estive lá fora, dei a volta nas arquibancadas. Eu estava nos gritos do Amiltom, do Chico e do Juliano Panazzollo. Estava no descortino do Pito e na perna esquerda do Diego, na ôla e nas lágrimas de cada um dos 17.818. Eu estava no peito e no pulmão de cada jogador. Eu estava na alma e no coração do Ypiranga. Agora – posso voltar em paz. A missão está cumprida’.

           

‘Nas planuras e serras tão lindas/Ypiranga, Ypiranga em louvor!/Quer na paz, quer na luta bem-vindas/As vitórias da força e do amor!’.

            A crônica de uma tarde anunciada estava pronta.